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SubscreverAcórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 27 de junho de 2024, Servier SAS e outros/Comissão (C-176/19)
O Tribunal de Justiça proferiu o seu acórdão no processo C-176/19, no qual dá provimento ao recurso interposto pela Comissão contra a decisão do Tribunal Geral no processo Servier, que trata da complexa interação entre os direitos de propriedade intelectual e o direito da concorrência no sector farmacêutico em franca evolução.
Resumo do processo:
Servier, um laboratório especializado no desenvolvimento de medicamentos originais, desenvolveu o perindopril, um medicamento para o tratamento da hipertensão e da insuficiência cardíaca. Desde 1981, a sociedade registou diferentes patentes destinadas a proteger o produto e o seu processo de fabrico. De 2003, após a expiração formal da primeira patente - apesar de alguns Estados-Membros terem prolongado a proteção - até 2009, a Servier esteve envolvida numa série de batalhas judiciais com fabricantes de genéricos. A maioria dos processos foi encerrada antes das decisões finais, em resultado de acordos celebrados entre a Servier e alguns fabricantes de medicamentos genéricos.
No Reino Unido, a Servier processou a Krka, uma sociedade eslovena, por violação de patentes perante o Superior Tribunal de Justiça de Inglaterra e do País de Gales, que, por sua vez, apresentou um pedido de reconvenção com vista à invalidação de outra patente relacionada com o perindopril. Por fim, foi estabelecido um acordo no qual a Krka concordou em não contestar as patentes acima referidas e em não comercializar perindopril genérico. No entanto, através de um acordo de licença, a Servier concedeu à Krka um direito exclusivo de utilização da patente "947" - relacionada com a forma alfa cristalina do perindopril e com o processo para o seu fabrico - nos principais mercados da Krka (República Checa, Letónia, Lituânia, Hungria, Polónia, Eslovénia e Eslováquia), mediante o pagamento de uma royalty de 3%. Adicionalmente, a Krka cedeu à Servier dois pedidos de patente relacionados com a produção de perindopril por um montante de 30 milhões de Euros. No entanto, em maio de 2009, a Câmara de Recurso Técnica do IEP revogou a patente 947.
Em julho de 2014, a Comissão considerou que a Servier tinha infringido o artigo 101º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia ("TFUE"), ao celebrar um acordo de repartição de mercado com os fabricantes de medicamentos genéricos, e o artigo 102º do TFUE, ao aplicar uma estratégia de exclusão que abrangia o mercado do perindopril, e aplicou coimas no montante de 289 727 200 euros e 41 270 000 euros, respetivamente. A Servier impugnou a decisão, que foi parcialmente anulada pelo Tribunal Geral. Em particular, o Tribunal Geral (i) considerou que a Comissão não tinha estabelecido a existência de uma restrição de concorrência por objeto ou efeito nos acordos Krka, e (ii) invalidou as conclusões relacionadas com o abuso de posição dominante por parte da Servier, uma vez que encontrou erros de avaliação cometidos pela Comissão ao definir o mercado relevante do perindopril. Em 22 de fevereiro de 2019, a Comissão recorreu em cassação para o Tribunal de Justiça, que deu provimento ao recurso e remeteu o processo para o Tribunal Geral para reapreciação.
Pontos chave do acórdão:
O acórdão do Tribunal de Justiça esclarece certas regras relativas à aplicação do direito de concorrência aos acordos de licenciamento no sector farmacêutico:
- Quando um mercado de um medicamento se abre aos fabricantes de genéricos, para determinar se um desses fabricantes é um concorrente potencial de um fabricante de medicamentos originadores, é necessário determinar se existem possibilidades reais e concretas deste entrar nesse mercado e concorrer com o último. O precedente para esta avaliação é o processo Generics (UK) e Others (C-307/18). A este respeito, embora o Tribunal Geral tenha considerado que "existiam indícios consistentes que poderiam ter levado as partes a acreditar que a patente '947 era válida", sugerindo que não existia concorrência potencial entre as empresas, uma vez que o mercado estava protegido por essa patente, o Tribunal de Justiça determinou que o Tribunal Geral violou o seu dever de fundamentar o seu acórdão (nos termos do artigo 36º do Estatuto do Tribunal de Justiça) ao não examinar todos os elementos de prova invocados a este respeito.
- A existência de uma patente que proteja um medicamento original ou um dos seus processos de fabrico é altamente relevante quando se analisa a relação de concorrência entre um fabricante de medicamentos originaise um fabricante de genéricos. De acordo com o acórdão do Tribunal de Justiça, a análise correta deve centrar-se na questão, de saber se, apesar da existência dessa patente, a empresa dos genéricos tem possibilidades reais e concretas de entrar no mercado no momento relevante. No presente caso, o Tribunal Geral limitou a sua análise à questão de saber se a taxa de royalties prevista no acordo de licença da Krka era anormalmente baixa, pois isso provaria que o acordo de compensação mascarava, de facto, um pagamento inverso. Em vez disso, segundo o Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral deveria ter examinado se os benefícios para a Krka resultantes do acordo, que lhe permitia comercializar o produto nos seus principais mercados sem risco de violação da patente, eram suficientemente significativos para persuadir efetivamente a Krka a entrar nos principais mercados da Servier, o que equivaleria a uma atribuição de mercado mediante um pagamento.
- Os acordos nos termos dos quais uma empresa de genéricos que pretende entrar num mercado reconhece, pelo menos temporariamente, a validade de uma patente detida por uma empresa de um medicamento original e, consequentemente, se compromete a não contestar essa patente e a não entrar nesse mercado podem constituir uma restrição da concorrência por objeto. Segundo o Tribunal de Justiça, o fato do acordo prosseguir um objetivo legítimo não exclui, por si só, a aplicação do direito da concorrência (artigo 101º, nº 1, do TFUE), sobretudo se o acordo tiver igualmente por objetivo repartir mercados ou restringir a concorrência de outras formas.
- Em conformidade com o ponto anterior, um acordo que reserva determinados mercados a um fabricante de medicamentos originais em troca da concessão de uma licença de patente a um fabricante de genéricos noutros mercados pode constituir uma repartição de mercado anti concorrencial. O facto de um acordo de repartição de mercado não criar uma divisão "hermética" entre as partes não impede de forma alguma que seja caracterizado como uma restrição da concorrência por objeto. De acordo com o Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral estava, portanto, errado ao considerar que não existia repartiçãode mercado, uma vez que os acordos de compensação e de licença não reservavam expressamente qualquer parte do mercado à Krka. Além disso, o acórdão estabelece que o Tribunal Geral aplicou erradamente o artigo 101º, nº 1, do TFUE quando se baseou nos efeitos pró-concorrenciais que o Acordo de Licença poderia ter nos principais mercados da Krka, uma vez que é doutrina bem estabelecida que quaisquer efeitos positivos ou pró-concorrenciais de uma conduta não podem ser tidos em conta para determinar se essa conduta deve ser caracterizada como uma restrição da concorrência por objeto nos termos do Artigo 101º, nº 1, do TFUE.
- Quanto ao artigo 102º e à definição de mercado, no sector farmacêutico, a substituibilidade económica entre medicamentos deve ser apreciada em função das variações de vendas entre medicamentos destinados à mesma indicação terapêutica, provocadas pela evolução dos preços relativos desses medicamentos. A constatação da inexistência dessa substituibilidade indica a existência de um mercado distinto, quaisquer que sejam os motivos dessa constatação. Segundo o acórdão, o Tribunal Geral considerou erradamente que o mercado do produto relevante não se limitava apenas ao perindopril, mas incluía outros inibidores da ECA.
Todos os aspetos considerados, o Tribunal de Justiça remete o processo para o Tribunal Geral, para que este se pronuncie novamente sobre a qualificação do acordo de licença celebrado entre a Servier e a Krka como restrição da concorrência por objeto, bem como sobre a existência de um abuso por parte da Servier da sua posição dominante.
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