Que bens jurídicos são protegidos pela CS3D?

2024-09-04T17:32:00
União Europeia
Direitos humanos e o capital ambiental protegidos pela Diretiva: para além das listas
Que bens jurídicos são protegidos pela CS3D?
4 de setembro de 2024

Sustenibilidade e diligência devida empresarial

Neste terceiro post sobre a Diretiva (UE) 2024/1760 relativa ao dever de diligência em matéria de sustentabilidade das empresas (“CS3D”), refletimos sobre o âmbito de aplicação material da regra e sobre a conveniência de olhar para além das listas de direitos e tratados ambientais constantes do anexo da regra (ver edições anteriores no Post | A CS3D em perspetiva e Post | Quem será impactado pela Diretiva CS3D?)

O considerando 32 da CS3D determina que o seu objetivo é proteger de forma exaustiva todos os direitos humanos. Os considerandos 9 a 13 apontam para o papel das empresas nos objetivos e planos da União Europeia para uma economia sustentável do ponto de vista ambiental e climático. No entanto, ao definir o seu âmbito de aplicação material, a CS3D não seguiu as normas internacionais através de uma disposição genérica que abrangesse todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos e o ambiente e as suas categorias gerais. Em vez disso, optou por um sistema de listas em anexo, sujeitas a revisão por parte da Comissão Europeia através de atos delegados.

Nesta publicação, analisamos quais os direitos e ativos ambientais incluídos nestas listas e também refletimos sobre a abordagem mais adequada para a sua interpretação, tendo em conta as pistas e diretrizes fornecidas pela própria CS3D.

As listas anexas à CS3D

A Diretiva enumera os direitos humanos e os ativos ambientais abrangidos pela norma num Anexo:

  • A Parte I do Anexo diz respeito aos direitos humanos e contém duas listas. A primeira enumera os direitos específicos e a segunda os instrumentos internacionais em matéria de direitos humanos. Em resumo, a primeira lista inclui:
    •  Direitos civis: como o direito à vida, a proibição da tortura e de tratamento degradante, o direito à liberdade e à segurança, a proibição de ingerência ilegal na vida privada, familiar, doméstica e de correspondência, os direitos da criança e a liberdade de pensamento, opinião e religião.
    • Direitos sociais e económicos: tais como o direito ao trabalho em condições equitativas e satisfatórias (incluindo um salário justo e um salário ou rendimento dignos, o direito a condições de trabalho seguras e saudáveis e a uma limitação razoável do horário de trabalho), o direito de acesso a habitação adequada para os trabalhadores, se esta for fornecida pela empresa, o direito de acesso a alimentos, vestuário, água e saneamento no local de trabalho, a proibição do trabalho infantil, do trabalho forçado e de todas as formas de escravatura e de tráfico de seres humanos, a liberdade de associação e de reunião, o direito de associação e de negociação coletiva e a proibição da discriminação no trabalho.

      Para além destes direitos, existem ainda (sujeitos a certas condições) os direitos reconhecidos nos seguintes instrumentos internacionais de direitos humanos que não estão incluídos na primeira lista:
    • O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
    • O Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais.
    • A Convenção dos Direitos da Criança.
    • Convenções essenciais e fundamentais da OIT (n.º 87 sobre a liberdade sindical e a proteção dos direitos dos trabalhadores, n.º 98 sobre o direito de associação e de negociação coletiva, n.º 29 e 105 sobre o trabalho forçado e a abolição do trabalho forçado, n.º 138 sobre a idade mínima, n.º 182 sobre as piores formas de trabalho infantil, n.º 100 sobre a igualdade de remuneração e n.º 111 sobre a discriminação em matéria de emprego e profissão). 

  • A Parte II do Anexo define os ativos ambientais, através de uma lista de infrações a proibições e obrigações refletidas em instrumentos internacionais em matéria de ambiente. Incluem:

      • Obrigações de proteção da biodiversidade e das espécies em vias de extinção.
      • Proibição da utilização de produtos químicos poluentes persistentes.
      • Proibições de resíduos e de substâncias controladas que empobrecem a camada de ozono.
      • Proibições em matéria de importação e exportação de resíduos perigosos.
      • Obrigações de proteção do património natural e dos ecossistemas.
      • Determinadas proibições e obrigações relativas ao transporte marítimo para prevenir a poluição dos oceanos. 

    O sistema de listas recebeu críticas pela sua limitação: se a CS3D pretende assegurar o dever de diligência de uma empresa relativamente aos efeitos adversos que as suas operações e as da sua cadeia de atividades possam gerar em termos de direitos humanos e de ambiente, uma lista fechada gera inevitavelmente omissões relevantes.

    Estas omissões incluem, por exemplo, a Declaração das Nações Unidas (NNUU) sobre os direitos dos povos e comunidades indígenas (2007), a Convenção sobre a proteção dos direitos dos trabalhadores migrantes e das suas famílias (1990), a Declaração NNUU sobre os defensores dos direitos humanos (1998), ou a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação sobre a mulher (1979); bem como a omissão de qualquer referência ao Direito Internacional Humanitário. 

    Uma visão alargada: a inter-relação e a interdepêndencia entre os direitos humanos e entre estes e o ambiente

    No entanto, a própria Diretiva aponta para a necessidade de uma leitura que incorpore a interdependência e a indivisibilidade dos direitos humanos, bem como a sua inter-relação com um ambiente são e saudável.

    • É o que faz no próprio Anexo, que inclui expressamente: 

        • os direitos das pessoas, grupos de pessoas e comunidades à terra e aos seus recursos, e a proibição da privação dos meios de subsistência; e
        • a proibição de causar qualquer degradação ambiental do solo, da água e do ar e o consumo excessivo de recursos naturais que tenha impacto nos direitos de acesso aos alimentos, à água e às condições sanitárias, nos direitos à saúde e à segurança, ou na utilização normal da terra ou dos bens legalmente adquiridos, e nos serviços ecossistémicos que contribuem para o bem-estar humano.

      Também o faz nos considerandos 32 a 37, onde encontramos algumas pistas úteis para a leitura e interpretação do Anexo.

        • Abragência e a inter-relação: a Diretiva visa abranger de forma global os direitos humanos, bem como qualquer degradação ambiental significativa do solo, da água, do ar ou dos recursos naturais que tenha impacto nos direitos das pessoas, na saúde e no seu bem-estar, com uma referência expressa ao direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável e ao conceito de “uma só saúde” - que remete para a inter-relação entre a saúde humana e a saúde ambiental.
        • Análise casuística: integrar, em função das circunstâncias específicas de cada atividade empresarial e dos factores e contexto de cada caso, outras regras internacionais não referidas no anexo. Por exemplo, sobre os direitos dos povos indígenas, a eliminação da discriminação da mulher ou os direitos das pessoas com incapacidade.

      Por último, fá-lo recordando (considerando 17) que as obrigações da CS3D não prejudicam as previstas noutras regras europeias que estabelecem obrigações específicas de dever de diligência para determinados produtos ou direitos (por exemplo: produtos associados à desflorestação e ao seu impacto nos direitos dos povos indígenas e no acesso aos alimentos); minerais provenientes de zonas de conflito ou de alto risco; ou baterias e respectivos resíduos, devido aos seus impactos ambientais e nos direitos humanos no processo de extração). Ver mais detalhes em Legal Flash | O dever de diligência em matéria de desflorestação e trabalho forçado.

       Reflexão

      Ao contrário da opção de fixar o âmbito material através de disposições gerais, a CS3D opta por um sistema de listas, suscetível de ser revisto. Esta opção permite uma maior especificidade, nomeadamente numa matéria regida pelo Direito internacional dos direitos humanos, até há pouco tempo afastada da atividade da empresa.

      É questionável se este facto aumenta a segurança jurídica para a empresa obrigada. A própria regra sugere uma leitura da lista tendo em consideração que os direitos humanos são indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados entre si e com um ambiente saudável, limpo e sustentável. Portanto, ao realizar o exercício de identificação de riscos de efeitos adversos sobre os direitos humanos e o meio ambiente, será fundamental manter uma visão que ultrapasse o sentido literal das listas e tenha em consideração as circunstâncias e os fatores de risco que ocorrem em cada caso.

      4 de setembro de 2024