A FIFA terá de alterar determinadas disposições para garantir a livre circulação dos trabalhadores e o respeito pelo direito da concorrência.
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SubscreverEm 4 de outubro de 2024, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu um acórdão sobre a questão submetida a título prejudicial no processo C-650/22, FIFA contra Bosman, concluindo que várias normas do Regulamento sobre o Estatuto e a Transferência de Jogadores (RETJ) impedem a livre circulação de trabalhadores e restringem a concorrência entre clubes de futebol.
O pedido de decisão sobre a questão submetida a título prejudicial foi apresentado no âmbito de um processo em que Lassana Diarra, antigo jogador profissional de futebol, pedia à FIFA uma indemnização pelos danos que lhe teriam sido causados pelas referidas normas, na sequência da alegada rescisão sem justa causa do contrato do jogador com um clube de futebol.
O acórdão do Tribunal de Justiça está disponível aqui.
Antecedentes
Em setembro de 2022, o Tribunal da Relação de Mons submeteu um reenvio prejudicial ao TJUE na sequência de um litígio entre o antigo futebolista Lassana Diarra e a FIFA relativo a determinadas disposições do RETJ.
Os factos remontam a 2014, quando o clube russo Futbolny Klub Lokomotiv rescindiu o contrato assinado com o jogador, por alegada violação do contrato por parte do jogador, exigindo-lhe o pagamento de uma indemnização de 20 milhões de euros. Um ano mais tarde, o jogador recebeu uma proposta do Sporting du Pays de Charleroi, mas a Federação Real Belga de Futebol (URBSFA) recusou-se a registar o jogador até que o seu antigo clube emitisse um certificado de transferência internacional em conformidade com as normas da FIFA.
No final de 2015, Lassana Diarra interpôs uma ação contra a FIFA e a URBSFA e pediu uma indemnização de 6 milhões de euros pelos rendimentos que deixou de gerar por não ter podido assinar pelo clube belga durante a época 2014-2015, pedido que foi julgado procedente e objeto de recurso pela FIFA junto do Tribunal da Relação de Mons.
O reenvio prejudicial submetido pelo Tribunal da Relação de Mons vem questionar, se as normas europeias relativas à livre circulação de trabalhadores e à proteção da livre concorrência devem ser interpretadas de forma a serem consideradas contrárias a determinadas disposições do TFUE, designadamente: (i) o princípio da solidariedade no pagamento de indemnizações em caso de rescisão de um contrato sem justa causa (n.º 2 do artigo 17.º) (ii) a imposição de sanções (como a impossibilidade de registar o jogador) aos clubes que tenham rescindido ou induzido o jogador a rescindir o seu contrato durante o período protegido de três anos após a entrada em vigor do contrato com o clube de origem (n.º 4 do artigo 17.º) e (iii) a possibilidade de uma federação recusar o Certificado Internacional de Transferência (CIT) a um jogador em caso de litígio pendente entre um dos seus clubes membros e esse jogador (n.º 1 do artigo 9.º e n.º 7 do artigo 8.2 do Anexo 3).
Considerações do Tribunal de Justiça
Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça considera que as disposições em causa dizem diretamente respeito tanto às competições de futebol (que constituem uma atividade económica) como à concorrência entre clubes de futebol, razão pela qual lhes são plenamente aplicáveis os artigos 45.º e 101.º. Uma vez que os dois artigos prosseguem um objetivo diferente, que a sua aplicação não se exclui mutuamente e que a sua violação não acarreta as mesmas consequências, o Tribunal de Justiça considera que devem ser interpretados conjuntamente.
No que diz respeito à existência de um obstáculo à livre circulação de trabalhadores (ex artigo 45.º do TFUE), o TJUE considera que as disposições em causa, no seu conjunto, são suscetíveis de prejudicar os jogadores que têm a sua residência ou o seu local de trabalho no seu Estado-Membro e que pretendem jogar num novo clube estabelecido noutro Estado-Membro, tendo rescindido unilateralmente o seu contrato de trabalho com o seu clube anterior por um motivo que este último poderá considerar injustificado, tanto mais que se trata de normas que se aplicam especificamente aos casos de circulação transfronteiriça de jogadores.
O Tribunal de Justiça considera que as disposições em causa são suscetíveis de privar um jogador que, alegadamente rescindiu o seu contrato sem justa causa, da possibilidade de receber ofertas de emprego de clubes estabelecidos noutros Estados-Membros, em grande medida - efetiva ou pelo menos potencialmente - afetando a sua liberdade de circulação. Com efeito, a Comissão considera que a conjugação das disposições em causa comporta riscos jurídicos e financeiros imprevisíveis para os novos clubes, suscetíveis de os dissuadir de contratar esses jogadores.
Com base no que precede, e embora caiba ao órgão jurisdicional de reenvio analisar a existência de uma justificação para o entrave à liberdade de circulação (verificando se as referidas disposições prosseguem um objetivo legítimo de interesse geral e respeitam os princípios da proporcionalidade e da necessidade), o Tribunal de Justiça faz algumas observações pertinentes relativamente às justificações apresentadas pela FIFA.
Segundo a FIFA, o regulamento impugnado prossegue os seguintes objetivos:
- Proteger os jogadores de futebol na sua qualidade de trabalhadores. O TJUE considera que essa proteção não é um objetivo da FIFA e que as autoridades públicas não atribuíram essa função à FIFA.
- A procura de estabilidade contratual. Para o TJUE, a manutenção de um certo grau de estabilidade do pessoal e de continuidade dos contratos contribui para a prossecução do objetivo legítimo de assegurar a regularidade das competições de futebol entre clubes (embora não seja um objetivo em si mesmo).
- Preservar a regularidade e o desenrolar das competições. O TJUE reconhece que se trata de um objetivo legítimo de interesse geral que pode ser prosseguido a fim de evitar transferências tardias que comprometam o valor desportivo de uma determinada equipa e prejudiquem tanto a comparabilidade dos resultados entre equipas como o desenvolvimento do campeonato no seu conjunto.
No que se refere à proporcionalidade das disposições em causa, o Tribunal de Justiça considera que, embora pareçam adequadas para alcançar um certo grau de regularidade nas competições, mantendo a estabilidade do plantel, alguns aspetos ultrapassam esse objetivo. Com efeito, estas normas são aplicadas em conjunto e algumas delas dizem respeito a longos períodos, sem ter em conta que a carreira dos jogadores profissionais de futebol é relativamente curta (e pode conduzir a um fim prematuro da carreira).
Considera ainda que os critérios de cálculo da indemnização a pagar pelo jogador e pelo novo clube parecem ter como objetivo preservar os interesses financeiros dos clubes e não assegurar o bom desenrolar das competições. O TJUE recorda que, embora uma associação como a FIFA possa prever a imposição de sanções em caso de incumprimento das normas que adota (desde que procure assegurar o cumprimento de normas que prossigam um fim legítimo), tais sanções só são admissíveis se a sua determinação estiver sujeita a critérios transparentes, objetivos, não discriminatórios e proporcionais (tendo em conta as circunstâncias do caso concreto para determinar o montante e a duração da sanção).
No que diz respeito ao CIT, refere que este também não é proporcional por não ter em conta as circunstâncias do caso concreto (i.e., contexto factual, comportamento do jogador e do antigo clube ou o papel desempenhado pelo novo clube).
Por último, o TJUE conclui que as disposições impugnadas são contrárias ao artigo 45.º do TFUE, a menos que se demonstre que essas normas, tal como interpretadas e aplicadas no território da União, não vão além do que é necessário para alcançar o objetivo de assegurar a regularidade das competições de futebol entre clubes, mantendo um certo grau de estabilidade nos plantéis.
No que diz respeito à análise à luz do direito da concorrência (ex artigo 101.º TFUE), o Tribunal de Justiça começa por recordar que a análise da questão de saber se o grau de nocividade de um acordo é suficiente para considerar que tem por objeto restringir a concorrência, não exige a prova dos efeitos desse comportamento na concorrência. Do mesmo modo, o facto de as empresas não terem a intenção de restringir a concorrência ou de prosseguirem um objetivo legítimo é irrelevante para efeitos da aplicação do art. 101.º do TFUE.
Segundo o Tribunal de Justiça, tendo em conta que as competições de futebol se baseiam essencialmente no mérito desportivo, é legítimo que a FIFA procure assegurar uma certa estabilidade na composição do plantel. No entanto, os clubes não podem ser impedidos de exercer uma concorrência transfronteiriça na contratação unilateral de jogadores já empregados por um clube estabelecido noutro Estado-Membro ou de jogadores cujo contrato de trabalho com esse clube tenha sido alegadamente rescindido sem justa causa.
Longe de impedir práticas de recrutamento agressivas, estas normas constituem acordos de não solicitação entre clubes que conduzem a uma compartimentação artificial dos mercados nacionais e locais, em benefício de todos os clubes. De facto, trata-se de uma proibição geral de transferência de jogadores já contratados, imposta pela associação de clubes (FIFA) aos próprios clubes e imposta aos seus empregados (os jogadores).
Nestas circunstâncias, deve considerar-se que tais normas têm por objetivo restringir ou mesmo impedir a concorrência em toda a União.
No que respeita à eventual justificação à luz do artigo 101.º, n.º 3, do TFUE, que o advogado principal Szpunar tinha categoricamente excluído nas suas conclusões, o Tribunal de Justiça remete expressamente para uma das quatro condições exigidas por este artigo, a saber, o carácter indispensável ou a necessidade da restrição da concorrência. Para o TJUE, o órgão jurisdicional de reenvio deve ter em conta que as disposições em causa se caracterizam por uma conjugação de elementos, muitos dos quais discricionários ou desproporcionados, e que as referidas normas estabelecem uma restrição generalizada, drástica e permanente à concorrência transfronteiriça que os clubes profissionais de futebol podem exercer na transferência unilateral de jogadores de alto nível.
Para além disso, e no que respeita à indispensabilidade da medida, o TJUE considera que os mecanismos tradicionais do direito dos contratos são suficientes para garantir (i) a presença a longo prazo desse jogador no clube de origem e (ii) o normal funcionamento das regras de mercado entre os clubes (que podem contratar o jogador no final do contrato ou mais cedo se for celebrado um acordo financeiro entre clubes).
A posição da FIFA
Na sequência do acórdão do TJUE, a FIFA declarou publicamente que o acórdão constitui uma oportunidade para modernizar o quadro regulamentar da FIFA, com vista a manter o diálogo com as principais partes interessadas, sublinhando que o quadro regulamentar do atual sistema de transferências tem elementos de grande relevância (normas sobre os períodos de inscrição, sobre a compensação por formação e o sistema de resolução de litígios, entre outros) que não são afetados pelo acórdão do TJUE.
Para a FIFA, esta decisão não põe em causa o facto de os contratos de trabalho entre jogadores e clubes serem respeitados e, na verdade, reforça dois pontos fortes: os jogadores que queiram rescindir um contrato sem justa causa terão consequências financeiras e um clube que queira contratar um jogador com um contrato válido terá de pagar a taxa de transferência.
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